segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Atenas-2004 - O Brasil à Grega

Depois de ver o mundo virar pelo avesso nos últimos quatro anos, a contar de setembro de 2004, revirei o baú das minhas recordações e encontrei num arquivo perdido dentro de um computador com mais de 15 anos de idade, os originais de um livro que só agora começo a revisar.

É desses rascunhos feitos em uma temporada solitária de quase um mês em Atenas que vou editar alguns capítulos que nasceram da observação que tive tempo de exercitar, enquanto o Brasil ia fazendo sua imagem de uma das potências paraolímpicas mundiais.

A temporada foi solitária justamente porque eu fazia parte da numerosa comitiva oficial do Comitê Paraolímpico Brasileiro - organização que, em maio de 2002 me contratou como seu assessor de imprensa.

Daquele setembro de 2004 na Grécia à primavera de 2005 no Brasil eu vivi um doloroso outono como jornalista de "bom caráter, texto correto e ânimo forte, mas destituído de espírito de corpo suficiente para entrar na alma corporativista da coisa...". Isso que está entre aspas nunca me foi dito, nem antes no Brasil, nem durante lá na Grécia, muito menos depois já de novo na sede do CPB em Brasília - centro nacional do poder de decisões. O canto a que fui relegado foi que me mostrou as almas paraolímpicas de todos as auras que me cercavam.

É do que vi e do que senti que vou falar. É que, no fundo, no fundo, hoje eu sei - que mesmo tendo trabalhado em dezenas de redações de rádio, TVs e jornais de todos os tamanhos, afora assessorias públicas e notórias - sempre fui um jornalista sem patrão.

Então, antes que o governo perpetre, nessa espúria 1ª Conferência Nacional de Comunicação, a vilania de amordaçar também a internet, à medida que vou revisando os alfarrábios helênicos ouso desafiar os astros transformando-os em postagens imediatas.

Vou sem fome ao pote. Mas, para vocês, bom apetite!


ATENAS, APENAS...
Um Triglota na Grécia à Brasileira

Se uma pessoa se mostra cortês e simpática”.
com um estrangeiro, demonstra que é um cidadão do mundo
”.

(F. Bacon, Essays, 13. Goodness and Goodness of Nature).


Triglota, falo e entendo português castiço-brasiliense e espanhol fronteiriço-pampeiro. Misturo tu com usted e o senhor com você. Inglês eventual, uma pinóia! O meu é de aeroporto: apurado ou retardado, conforme as circunstâncias.

Aí, mister e sir se encontram com incômoda assiduidade. Sou portador de triglotice bastante para não morrer de fome numa calenda grega e impedir que a brasileirice me deixe a ver navios na República Helênica.

No fundo, numa ilha de Mikonos qualquer, o mimetismo é o idioma universal que nos faz camaleões; que nos mistura e nos confunde com o meio ambiente e com todas as formas de homens e mulheres de todas as espécies, de todos os humores, de todos os sexos.

Foi preferencialmente com a língua afiada nesses três jeitos de expressão que me entendi com homens e mulheres de Atenas – gente emburrada por vocação que resiste a tudo, menos ao sotaque brasileiro de sorrir e fazer amigos.

Nesse exercício de comunicatividade, repassei-lhes os nossos palavrões e captei seus mais ofensivos gestos. O que o dedão pai-de-todos apontado para cima é para os globalizados brasileiros, nada demais ele significa para os gregos. Não espalme, no entanto, a mão virada para eles. São capazes de esganar você. É sinal de desdita para sempre. Grego é supersticioso, morre de medo de praga rogada.

A injúria que se comete no trânsito verde-amarelo vira um agressivo grito de malaka, ofensa ateniense corriqueira e bem pior que chamar alguém de filho-disso, filho-daquilo! Filho-dessa, filho-daquela!

Foi assim, falando grego com as mãos em diversos idiomas, rindo, tocando em tudo que descobri que as divindades se fizeram mortais hodiernos, meros e encantados admiradores desse exótico e mágico melhor lugar do mundo, o Brasil.

Bastou-me tão somente contar-lhes histórias recentes tão fantásticas quanto as suas antigas fantasias. Falei de Lula como se fosse um comestível e não um indigesto calamar; contei da democracia petista cheia de dirceus e genoínos vilipendiados por Renans, Beira-Colors e Sarneys bem ali, no berço da dita cuja; e enchi a bola de Giovani, Zé Elias e Rivaldo como deuses do futebol. Grego é assim, adora história. Vive disso, não mais que isso. Também, pudera! Não fosse a imaginação fértil o que seria da Grécia?!? Não sobraria para contar a História.

Ou terá alguém visto mesmo o Minotauro? Ou Hércules liquidando a Hidra de Lerna?! Na Grécia você não encontra uma viva alma que saiba o nome daquele vizinho de porta de Homero – o gênio que, dizem gregos e troianos, teria escrito a Ilíada e Odisséia.

Pois olha, eu abri meus braços para os gregos e eles me abriram seu coração quando lhes disse com intensa e trágica dramaticidade, como se verdade fosse, que o Brasil tem o maior e o mais profundo respeito por Zeus – o deus dos deuses – mas que o brasileiro é, acima de tudo e por amor à gandaia, um devoto incurável de Baco – sua divindade preferencial. Essa última peça foi a que mais rendeu.

A partir daí, com proezas de futebol narradas em mitológicas dimensões, com farta distribuição de pins e abadás de cores nacionais, conquistei Atenas com mais facilidade que turcos e otomanos.

Transformei seus buzukis em violas enluaradas nas mesinhas de Monastiraki, ao sopé da Acrópole. E assassinei a Garota de Ipanema e o Pato; lhes mostrei Meu Cantinho e o Corcovado - as quatro e definitivas versões de bossa-nova que tenho no meu repertório.

Um minishow que encerrei certa noite daquelas, sob os aplausos de Jean Paul Galtier que perambulava há duas ou três semanas pelos becos de Psiri – um conjunto interminável de bares de pouca luz e boates feéricas nas cercanias de Plaka, lugar fashion e de enormes marcas multinacionais, aos pés dos deuses da farra na capital helênica.

Dali, ao final de toda santa noite, caminhava desacompanhado e em total segurança – em Atenas não há assalto nas ruas em tempo de jogos oli ou paraolímpicos – até a esquina da Marni, avenida do Golden City Hotel de onde, antes de entrar para dormir, eu sempre olhava para as luzes divinais da Acrópole que o luar da Grécia consagrava. Bom pequeno sono depois, o grande sonho logo era realidade: Atenas, apenas...


DEIXA-ME TOCAR
“Tudo vira sucesso para as pessoas”.
de caráter franco e alegre
”.
(Voltaire, Le Dépositaire).


Descobri logo que, em Atenas, sexta-feira é o mesmo dia das bruxas que no Brasil. E que Monastiraki, Plaka e Psiri eram – como diria um gaúcho do Bonfim, em Portinho – um complexo trilegal de lazer intenso.

E foi num restaurante, híbrido de café, lanchonete e bar que, por sorte, me deram uma mesinha de rua onde chovia chope Amstel de meio-litro. Essa mesinha ficava, por azar grego, colada num trio musical maravilhoso que fazia a festa dos turistas que se acotovelavam aos borbotões pelo passeio estreito que invadia as calçadas e fazia daquilo uma versão de Rua do Ouvidor em hora de pique; uma espécie de vaivém comportado num momento de trégua dos carnavais de Salvador e Recife.

Gregos e gregas – depois eu conto – comem, bebem, fumam e cantam muito e sempre. São bons nisso. E a noite foi crescendo. Mais um chope. Uma pita pork sweetheart – pão sírio, lombinho em lascas finas como se fossem batata-palha, molho de iogurte apimentado na justa medida, tudo cercado de crocantes papas fritas.

Mais uma música de lamento grego e não resisti. Aquele instrumento, feito um bandolim de beduíno, pelo som e pelo jeito que era tocado se transformou numa atração fatal. Descobri que atendia pelo nome de buzuki.

Então, meio amigão dos músicos - que já me sabiam brasileiro - pedi-lhes que tocassem coisas do Brasilyah: samba, bossa-nova. Eles, com delicada e eficiente presteza, logo destruíram o Tico-Tico no Fubá em meia dúzia de acordes sonoros e desritmados. Atrevi-me a pedir-lhe o instrumento emprestado e fui explícito:

- Deixa-me tocar no seu buzuki?
- No meu buzuki? Oh, né, né!

Ia me surpreendendo raivosamente com a negativa do artista de rua, quando descobri que , em grego, é sim. Peguei o buzuki dele. Foi então que lasquei o meu melhor de Garota de Ipanema – versão em inglês, bem como canta a diarista lá de casa. As primeiras notas cortaram o céu ateniense e interromperam a mesmice da música doméstica.

O fluxo parou. Na verdade, a rua parou. Choveu flash de maquinetas fotográficas de todas as origens e filmadoras nipo-americanas de todos os portes e feitios que se misturaram aos aplausos cheios de bondade e simpatia.

Deu um nó na garganta saber que o som Brasil é universal. Quatro musiquetas depois, parei. Parei em plena apoteose, até porque além daquele coelho nada mais sairia da minha cartola. Eu jamais faria, numa hora daquelas, o que Romário fez com seu futebol. O baixinho não soube parar. Dali pra frente o meu sucesso seria um inevitável holocausto. Parei no auge.

Entreguei a buzuki para o dono que me abraçou caloroso demais pro meu gosto. Os gregos não exalam lá essas coisas. Pelo menos, os músicos. E os garçons, os guardas, os pensadores, os guias... Os gregos mais perfumados são os turistas.

Antes do primeiro gole de chope depois da canja, ainda vi na, digamos, platéia, um homenzarrão loiro quase alto, de maneiras exageradas e de muito brilho nas vestes e no olhar, aplaudindo melodramática e hipocritamente tímido.

Soube depois, tratar-se de Jean Paul Galtier – figurino fácil das melhores vitrines de Atenas e das areias das ilhas Gregas. De todas elas. Inclusive a de Mikonos, paraíso da androginia mediterrânea.

E foi assim que, tocando no buzuki do grego, me fiz artista internacional por uma breve, brevíssima temporada de 15 minutos de fama. Escondi de mim mesmo a verdade verdadeira: eles tinham aplaudido mesmo era o Brasil, país da moda e o mais querido e simpático dentre as nações exóticas.


OS ATAZANADOS

“Whoever is in a hurry shows that the thing
he is about is too big for him”.

(Lord Chesterfield, Letters to his son, 10 ag. 1749).

Versão em inglês providencial:
Aquele que faz tudo atazanadamente
parece mostrar que o que tem entre as mãos
é demasiado grande para ele”.


Os mandarins do Comitê Paraolímpico Brasileiro tiveram, pelo menos, dois anos e caqueradas para planejar a participação do Brasil nos Jogos de Atenas em 2004. Sempre demonstrando um enorme ar de atazanação, aqueles que se consagraram deuses do Espaço Brasil na Grécia, faziam todos entenderem que o seu trabalho era extremamente desgastante, estressante e tudo que seja ante, até abundante.

É sempre assim: os que não sabem fazer fazem saber que os que sabem devem fazer pelos que não sabem. De propósito, enredei a frase; eles, sem querer, enrolam tudo. Em geral não são atarefados, são atazanados. Têm limites de tempo e de talento. Não necessariamente nessa ordem.

Para ficar só com o que se deu comigo, assessor de imprensa do CPB – segundo contrato de trabalho tri renovado até 20 de maio de 2005 – conto, de passagem, que desde às cinco horas da madrugada do dia 9 de setembro, uma primaveril quinta-feira, estava no aeroporto internacional de Brasília para viajar de TAM às 7h rumo a São Paulo, de onde partiria, às 14h para Frankfurt, escala tedesca do vôo até Atenas.Pois minha passagem, por extrema competência dos deuses organizadores, era direta.

Direta, no mau sentido da expressão. Direta, sem baldeação, da minha casa para Frankfurt. Fiz o milagre de dar asas à imaginação e conseguir carona num vôo Varig que saiu da capital federal pra lá do meio-dia e me deixou em Cumbica dez minutos depois do horário de partida da Lufthansa para a Alemanha.

Como para a empresa germânica um simples passageiro valia mais do que um jornalista da casa poderia representar para os bengalóides do presidente do CPB, um advogado cego que só não enxergava mais longe porque seus cães de fila não deixavam, o vôo esperou por mim. Com o pé no avião, foi uma mão na roda: eu não os fiz esperar. Decolamos. Com quase duas horas de atraso, por minha causa.

Pode até ter sido desculpa da empresa aérea para uma dessas sigilosas falhas em terra, mas que pareceu aos ocupantes do enorme aparelho voador que a demora foi por atenção a este reles repórter, ah pareceu. Eu vi pela cara de gregos e troianos que já tinham estarrado seus fundilhos naquelas poltronas estreitas e duras dos vôos de gente pobre. Bem feito.

O excelente e farto serviço de bordo alemão não compensa o desconforto da classe econômica. As poltronas precisariam de 15cm a mais de cada lado para chegarem aos pés dos bancos de qualquer ônibus interestadual no Brasil Da Silva. O mínimo que sua anatomia pode acusar, bem ali onde as costas perdem seu digno nome, é uma pontada irresistível de ciático. Mas, entre mortos e feridos, chegamos todos bem. Claro, meio cansados e cacofônicos com fusos e parafusos, posto que paraolímpicos.


A ARTE DA ESCOLHA

“Sabia que escolher era algo assim como
ser lançado na água, depois de haver
aprendido a nadar por correspondência”.

(S. Loren, Uma Casa com Goteiras, p.3, Cap. I).



Era sexta-feira. Dia das bruxas também na terra dos deuses da imaginação grega de todos os tempos – base fundamental para o fascínio e a existência da Grécia até hoje. No hotel, recebi o cartão de um apartamento compartilhado – como faz bem a uma manifesta demonstração de economia numa delegação oficial de terceiro mundo.

A liberdade de ação leva invariavelmente ao exercício da arte da escolha. Sem obrigação de concorrência, você dita como casar passagens com hotelaria.

Hotel novinho em folha. Carinho à beça – não me entenda mal: carinho, de caro; carinho, de diárias altas, em desacordo com outros tantos hotéis do mesmo porte e longe daquelas redondezas, rara zona de puteiro do centro de Atenas.

Era o Golden City Hotel, esquina da Marni, avenida que – como tudo na capital ateniense – leva à Acrópole. Tinha nos altos do saguão de entrada, onde ficava um bar-café que vendia uma horrenda rubiácea por preço de ecstasy ou coisa que o valha, três minissalas próprias para pigmeus e jornalistas nanicos, embora todos que lá estavam como convidados, fossem grandes profissionais de grandes redes de jornais, rádios e tevês.

Vai ver que, para a administração do hotel, atleta com deficiência é obrigatoriamente alguém de baixa estatura. Assim é que, pelo nefando detalhe, a estalagem se encaixava no requisito das tomadas de preço: acessibilidade obrigatória.

As acanhadas instalações eram, já se via, uma estratégia de contraponto dos deuses do dito espaço e dos guardiões brasileiros do Comitê Paraolímpico, ao requintado e criticado Escritório Brasil Olímpico, montado com toda pompa e circunstância pelo COB, duas semanas antes.

Fui ao banho. Um espaço mal pensado: banheirinha de hidro onde, se você banhasse os pés, não lavava as nádegas; com meio box de vidro que permitia molhar mais o chão do banheiro do que o próprio hóspede.

À noite, reunião do presidente do CPB com os jornalistas convidados. Uma fala segura, bem articulada que deu as boas-vindas a todos e não pediu mais do que o compromisso com a verdade de cada notícia. Uma chuva no molhado, a levar-se em conta que só a verdade é notícia. O resto é qualquer coisa. E como tinha qualquer coisa naquela delegação!

Eis que, lépida e faceira, altaneira e soberana, depois das devidas apresentações, a figura de um dos deuses do Espaço Brasil previne: “Este é um ambiente de trabalho. Esta televisão não é para se ver novela. Este não é um espaço para bate-papo. O cafezinho e as bolachinhas são para se beber e comer. A água mineral é em copos e as garrafas ficam na bandeja. E, por favor, de chinelo de dedo aqui, nem pensar”.

Consagrou-se. A maioria dos jornalistas ali remanescia das recém-findas Olimpíadas. Tinham trabalhado o tempo todo no requintadíssimo Escritório Brasil Olímpico de bermudas, Ryder e Havaianas – aliás, coqueluche dos dedinhos da Europa.


TÁXI, TÁXI!

As palavras elegantes não são sinceras;
as palavras sinceras não são elegantes
”.
(Lao Tse, O Livro da Vida e da Virtude, II, 81).


Vem a noite e com ela, minha primeira volta por Atenas. Examinando o mapa e olhando do terraço do hotel, Atenas me pareceu uma cidade fácil. Voltada para o Mar Mediterrâneo, protegida por oito grandes colinas, todas arenosas e cravejadas de pedras de todos os quilates, dava-me a impressão de que, saindo de um lugar qualquer e fazendo a volta na quadra, voltava-se ao ponto de partida. Ledo engano: perdi-me.

De cara, caminhei no rumo da sempre iluminada Acrópole que me parecia bem próxima. Cheguei, pela primeira vez, a Monastiraki. E já fui comprando bugigangas. Boas horas depois, sempre só e a pé, comecei a dar voltas e mais voltas em busca do caminho de regresso. Cansado de conhecer o mesmo círculo de Atenas procurei um táxi. E aí, comecei a entender os gregos. Cansei de fazer sinal. Abanei, assobiei, gritei. Nada, eles não paravam. Vi, enfim, um deles estacionado. Fui ao motorista:

- Please, where is...
- No, no, no!
- Hei, could you tell me where is the way…
- No, no, no!
– já me respondeu gritando, sem sequer olhar para mim.

Não me contive. Com o mais delicado ar de paciência e fingindo um gentil agradecimento, encostei minha cara na janela do carro dele e disse sorrindo, quase sussurrando para aquele grosso, mal-educado:

- Tá bem, seu bosta, muito obrigado pela sua grosseria; seu viado, bichona enrustida... Vá pra puta que o pariu!

Só então, ele levantou os olhos de um joguinho qualquer do celular com o qual passava o tempo. Cravejou-me um olhar agudo, frio e cortante. Eu fui saindo de fininho, até que, por acaso, encontrei o caminho de volta para o Golden City.

Lá, numa rodada de cafezinho grego a 2,5 euros cada um, fiquei sabendo por um garçom do hotel que o motorista havia entendido o final do meu desabafo: puta significa puta mesmo na Grécia. Ganhei o dia. Não levei um sopapo grego por pouco.


PIRA DAQUI!

“É impossível ser melhor que os outros neste mundo
sem ter reais aptidões.Um semideus de araque
pode menos que um porteiro de boate”.
(O autor, na porta do Golden City).


Eis que a primeira grande vitrine se abria em Atenas. Data: 16 de setembro. Era a noite da Cerimônia de Abertura Oficial dos XII Jogos Paraolímpicos. Os aguapés começaram a se mexer em águas mornas de navegantes ansiosos por visibilidade. A chama paraolímpica, no Espaço Brasil, já acendera a fogueira das vaidades.

Deuses e guardiões tomaram para si o controle dos convites e credenciais para uma relação de pessoas que, compulsoriamente, deveriam passar pelo seu crivo. Coisa assim como o Bola Preta foi um dia para a sociedade emergente do Rio de Janeiro.

No rol de ungidos, primeiro as autoridades: deusas, guardiões, o presidente - é claro – o ministro e depois, sim, a delegação, os jornalistas e os adidos da embaixada nacional do exibicionismo pessoal. A árdua tarefa de conseguir credenciamento e convites especiais para os brasileiros foi delegada, como sempre, a terceiros competentes súditos. Era preciso uma certa alquimia para liqüidificar os dirigentes de entidades nacionais paraolímpicas que, por conta de seus próprios caixas-1 ou 2, se acomodaram em um hotel da vizinhança, já conhecida de outros carnavais.

O pessoal da comunicação social do CPB gastou aquela manhã inteira com a árdua missão depara consolidar o cadastramento oficial que lhe permitiria entrar na Vila Paraolímpica – exceto na chamada zona residencial – e assistir à abertura festiva dos Jogos. Valeu a pena: cada jornalista ganhou uma moderna pasta-mochila e um relógio-cronômetro Watch de bom preço, mas bem menos valioso do que as diárias da temporada de cada um. Nesse time não jogava o experiente produtor de TV e lobista midiático terceirizado na antevéspera da partida do Brasil Paraolímpico para a Grécia.

Tarde saindo de mansinho para dar lugar à noite, banho tomado, uniforme brasileiro modelito CPB, recebo no apartamento por telefone o anúncio feito na voz de um dos estagiários da equipe de imprensa do Comitê dizendo-me que devo ceder meu convite para alguém que, à última hora, fora convidado para encaixar-se na comitiva do Prê – como, com vulgar intimidade era tratado por eles o mais alto executivo do CPB.

O próprio estagiário que me confiscava o convite, mentiu-me que já repassara o dele também. Em matéria de solenidade oficial, de chama paraolímpica, este assessor de imprensa e o suposto pobre estagiário, recebemos um verdadeiro “pira daqui!”. Como a verdade tem pernas mais longas, levei ainda um certo tempo para saber que o "bate-pé-que-ninguém-te-quer" foi dedicado apenas a mim, como solene deferência e mensagem direta de que me relegavam à casta dos excluídos.

Só não vi a abertura pela tevê grega, porque tratei da vida – como já me acostumara ao correr daquela primeira semana em Atenas. Um simples porteiro do hotel tinha vários convites e muitas credenciais para a festa. Sobrou um para mim. Custou-me um pin do Jaquinho – logomarca identificadora do Brasil Paraolímpico nos Jogos . Vi tudo do alto de um confortável lugar dentro da pista. Vi, inclusive, eles lá em cima, acotovelados no olimpo do estádio, no meio de 75 mil outros convidados.

Não pirei, levei na esportiva. O que levei a sério foi a indução explícita de que me consideravam apenas mais um turista, dentre tantos que o CPB carregou nas costas até Atenas. Afinal, o Jaquinho - miniatura de um crocodilo, bicho acostumado a se defender com a cola - fizera a sua parte a meu favor. Coisa esperada e nada surpreendente para um gaúcho, como este que lhes conta a história, acostumado a presenciar fatos iguais.

Mas, deuses e guardiões, haviam feito a devida escaramuça para demonstrar trabalho e aptidão. Missão cumprida, uma vez mais: o Prê estava, de novo, impressionado com a eficácia de seus sitiantes. Dormiram o sono dos justos, com a consciência do dever cumprido.


CHOVERAM* MEDALHAS

“Ao erro cometido é inútil
a revisão tardia”.
(Do autor, em Esquina do Aquário).


Durmo a noite toda. Das duas da madrugada às seis da manhã. Banho-me e banho o banheiro todo. Com quatro horas de sono bem-dormido vou para o terraço, rumo ao café da manhã. Vale a pena. Não pelo café - que o melhor do CPB estava na Vila Paraolímpica; não pelo café em si, mas vale a pena sim pelas frutas e pelas iguarias folheadas que os gregos servem em forma de brioches, pastéis, croissants e coisas quetais.

O melão é dos melhores que já comi; os pêssegos, greguíssimos; as uvas, sem sementes, têm a doçura das terras americanas de onde procedem. Mas, pelo menos, elas estavam lá. A nata batida com geléias e mel, a manteiga holandesa faziam daquele desjejum cotidiano um banquete dos deuses - bons e maus.

E tudo isso, comia-se olhando para os turistas alemães, japoneses e americanos, todos desbundados com a visão – adivinhem?! – da Acrópole! O leite de cabra, no entanto, era um concentrado de um gosto – digamos, acabrunhado - que evocava uma enorme saudade do Brasil.

Veio o primeiro dia de trabalho. E porque era sábado, havia a expectativa do domingo e reunião da Coordenadoria de Comunicação com a equipe da casa: três estagiários, três fotógrafos terceirizados, uma jornalista com diploma de um ano de idade, este brontossauro de rádios, tevês, jornais, assessorias e coordenadorias de comunicação públicas e privadas e, a outra deusa da comitiva – a coordenadora de comunicação do CPB.

Formada há um ano e meio na Católica de Brasília, ela própria editou seu currículo no site oficial do CPB. Era maior do que a história de vida do presidente do Comitê que, por sinal, e por fastio, a havia demitido três dias antes da viagem para a Grécia.

Diante de lágrimas tão crocodilianas de fazer inveja ao próprio Jaquinho, jacaré de papo-amarelo símbolo brasileiro nos Jogos, Vital Severino retemperou sua medida e, para encurtar o caso, reintegrou-a ao time brasileiro. Quer dizer, ela foi para Atenas tão coordenadora quanto eu fui como jornalista a serviço da cobertura do Brasil nos Jogos. Dois turistas incidentais.

A reunião foi no apartamento da divindade e não serviu para mais nada do que senão providenciarmos nosso credenciamento no Olympic Broadcasting Center – onde perdi minha carteira com todos os documentos e 3.200 euros.

Quatro horas depois de agonia – não pelos documentos, mas pelo dinheiro que era de estimação – reencontrei tudo nas mãos da polícia honesta e gentil de Atenas.

Foi o meu primeiro contato com a monumental e lindíssima Vila paraOlímpica de Atenas. Um elefante branco que, trinta dias depois dos Jogos - eu já sabia - ficaria às moscas para sempre. Um lote de espertezas políticas, uma fogueira de vantajosas vaidades que o povo grego vai pagar por mais de quarenta anos, pelo resto da vida.

Logo em seguida, saímos naquele dia, como um bando de catadores de informações e imagens. Uns pobres filhos da pauta. A mim, por uma decisão presidencial de última hora, caberia a tarefa de revisar o que fosse redigido. E redigir só o que fosse especial: as mensagens oficiais do Comitê. Um ghostwriter do presidente para assuntos gregários de somenos importância. Coisa assim que não fizesse mal a ninguém; que agradasse ao considerável público.

Passaram-se dois dias e nada me chegou às mãos. Ia tudo para o site e, em forma de releases, para as redações do Brasil do jeito que eles pensavam estar certo. Até que editaram a ufanista manchete: Choveram medalhas para o Brasil! Quando leitores e internautas conjugaram o verbo Eu chovo, tu choves, ele chove... choveu gozação pra cima do Comitê e seu cirque du soleil.

* Choveram, como diria o sarcástico Paulo Francis, diante de um instigante outrosssim... Choveram é a puta-que-pariu!


Stop: Se você está acompanhando o ATENAS-2004, O BRASIL À GREGA aqui pelo blog Esporte por Esporte, aguarde por favor a bertura de um novo espaço virtual para a edição completa dessa pequena jornada pela Grécia. Você logo será comunicado.